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sábado, 31 de março de 2018

A ÚLTIMA CEIA


A tradição católica celebra a Paixão, Morte e a ressurreição de Jesus Cristo, em cerimoniais litúrgicos que em data definida no calendário católico, conhecida como Semana Santa. O Domingo de Páscoa, nessa tradição, é dedicado à celebração da ressurreição de Jesus, simbolizando, sobretudo, a vitória da vida sobre a morte.

A Páscoa judaica é uma das celebrações mais significativas para o povo judeu, pois marca a libertação dos hebreus da escravidão no Egito, que se estendeu por aproximadamente quatrocentos anos. Notavelmente, os últimos dias de Jesus na Terra coincidiram com as festividades dessa Páscoa judaica

Jerusalém era uma cidade santa para o povo judeu, pois abrigava o grandioso Templo de Salomão, onde se realizavam as principais cerimônias religiosas. Por essa razão, durante as celebrações, a cidade se enchia de peregrinos. Pessoas de toda a Palestina partiam em romaria rumo a Jerusalém para participar das festividades da Páscoa, que se estendiam por oito dias.

No entanto, naqueles dias, Jesus, que era judeu, estava ausente de Jerusalém. Ele havia se dirigido com seus discípulos para Betânia, atendendo ao chamado de amigos muito queridos: Marta e Maria, irmãs de Lázaro.

As irmãs enviaram mensagem a Jesus, implorando sua presença, pois Lázaro estava gravemente doente (João 11, 1-3). Jesus, ao chegar em Betânia, descobre que Lázaro já estava no sepulcro há quatro dias e que seu corpo já exalava mau odor (João 11, 39)

Jesus, diante de um expressivo número de testemunhas, dirigiu-se ao sepulcro e ordenou: "Lázaro, sai para fora!" (João 11:43). Esse foi o milagre mais notável realizado por Ele. As pessoas presentes ficaram perplexas e maravilhadas. Nunca antes na história alguém havia feito algo semelhante. A notícia desse fenômeno espalhou-se rapidamente por toda a Palestina. Muitos viajaram até Betânia para verificar os fatos e se depararam com a extraordinária realidade: Lázaro estava vivo!

Jesus retorna a Jerusalém, cidade que estava repleta de pessoas devido às comemorações da Páscoa. Ao saber que Jesus estava a caminho de Jerusalém (João 12:12), o povo, em êxtase, entoou hinos e salmos, lançando ramos de palmeiras ao chão para criar um tapete verde em homenagem à passagem do rei. Após o milagre da ressurreição de Lázaro, o povo não tinha mais dúvidas: Jesus era o rei, o Messias esperado que viria para libertar os judeus do domínio romano.

Jesus entra na cidade, mas não da maneira tradicional da época, quando os reis, após vencerem guerras, faziam sua entrada triunfal montados em cavalos e corcéis majestosos. Jesus, o Príncipe da Paz, adentra a cidade montado em um jumento, simbolizando que sua vitória é sobre o mundo e que seu reino é fundamentado no amor e na paz.

Os fariseus já haviam decidido que Jesus deveria morrer (João 11:53-57), mas não se atreveram a prendê-lo diante do povo em êxtase. Era necessário capturá-lo em um momento de isolamento. Jesus, ciente de sua situação, não evitava os fariseus e sabia que sua hora de partir estava próxima (João 11:1). No entanto, Ele tinha um desejo ardente de celebrar a última ceia da Páscoa com seus discípulos (Lucas 22:11). Por isso, buscava um local seguro para se reunir com eles, longe dos olhares e mira farisaica. 

Jesus, então, envia Pedro e João às portas da cidade com uma missão: encontrar um homem carregando um cântaro. Esse homem os conduziria até sua casa, onde celebrariam a última ceia. O homem do cântaro, uma figura misteriosa cujo nome e origem não são registrados nos evangelhos, generosamente ofereceu sua casa para que Jesus e seus discípulos realizassem a celebração (Lucas 22:8-13). 

A última ceia, também conhecida como a ceia da Páscoa, nos legou inúmeros ensinamentos. A descrição desse momento nos quatro evangelhos é repleta de conteúdo espiritual, tão vasto que é desafiador enumerar todos os pontos sem tornar a leitura exaustiva. 

Por isso, selecionamos três tópicos para uma breve reflexão.

1- Na última ceia, Jesus anunciou a vinda do Consolador prometido, interpretado por alguns como a doutrina espírita. Conforme João 14:15-26: "Se me amais, guardai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre." (João 14:15) "Mas o Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito." (João 14:26). 

A doutrina espírita não foi concebida pelos homens do mundo, mas revelada ao mundo pelas vozes celestiais. Allan Kardec foi o instrumento escolhido por Jesus para codificar os ensinamentos oriundos do além. Da mesma forma que Moisés recebeu os Dez Mandamentos diretamente dos céus, Allan Kardec, com a ajuda de diversos médiuns, recebeu das esferas sublimes, cumprindo-lhe apenas sistematizar e codificar os conteúdos transmitidos pelos espíritos. 

O espiritismo representa a concretização da promessa feita por Jesus naquela última ceia. Pois, após Ele, nenhuma outra doutrina religiosa ou filosófica chegou à Terra proveniente dos céus.

O espiritismo reaviva os ensinamentos do Cristo, fornecendo a chave para a interpretação de diversos textos que, à primeira vista, parecem enigmáticos. Isso porque, naquela época, o mundo ainda não estava preparado para compreender todos os ensinamentos transmitidos pelo Senhor.

Foi necessário que a humanidade progredisse em conhecimentos filosóficos e científicos para adentrar nos ensinamentos profundos ministrados pelo Cristo. Esse avanço também foi crucial para a compreensão dos temas abordados nas cinco obras que compõem a doutrina espírita: "O Livro dos Espíritos", "A Gênese", "O Livro dos Médiuns", "O Céu e o Inferno" e "O Evangelho Segundo o Espiritismo".

2- Foi também naquela última ceia que Jesus destacou as duas maiores virtudes que a humanidade deve cultivar. Conjugadas nos verbos "amar" e "servir", elas habilitam o ser humano a aspirar à angelitude.

O verdadeiro amor é a manifestação de todas as outras virtudes. Quem ama, perdoa incondicionalmente. Quem ama demonstra paciência, tolerância, misericórdia, mansidão e é, ao mesmo tempo, pacífico e pacificador.

O apóstolo Paulo, ao abordar o tema do amor em sua primeira carta aos Coríntios, fez isso de maneira tão bela e profunda que sua mensagem foi transformada em versos e reverberou pelo mundo.“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como um bronze que ressoa ou como o prato que retine.  Ainda que eu tenha o dom de profecia e saiba todos os mistérios e todo o conhecimento, e tenha uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver amor, nada serei.  Ainda que eu dê aos pobres tudo o que possuo e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me valerá.

Naquela última ceia, Jesus disse aos discípulos: "Amai-vos uns aos outros. Não apenas como amais a vós mesmos, mas amai-vos ainda mais, como eu vos amei. Pois os meus discípulos serão reconhecidos por muito amarem." (João 13:34). Um discípulo de Jesus é identificado pela sua capacidade de amar os demais seres do mundo exatamente como eles são.

Deus ama todas as suas criaturas, do verme ao anjo, com igualdade. Seu amor é incondicional, abrangendo tanto o algoz quanto a vítima. No livro "Paulo e Estevão", psicografado por Chico Xavier e ditado pelo espírito Emmanuel, na última página, após o desencarne do apóstolo Paulo, Jesus, acompanhado de Estevão, vai ao encontro do espírito de Paulo. Ele lhe diz que é da vontade do Pai que verdugos e mártires se unam eternamente em Seu reino. O amor é a mais elevada conquista da criatura humana, essencial para a ascensão à angelitude.

No entanto, o amor é verbo que não se conjuga sozinho, pois quem ama serve.

Quando Jesus anunciou, naquela última ceia, sua partida e a iminente chegada do Reino de Deus, os discípulos começaram a debater sobre quem seria o maior nesse Reino. A situação foi descrita em Lucas 22:24-27. Jesus, então, esclareceu-lhes que, no Reino de Deus, o maior será sempre aquele que mais serve, que mais se dedica, e que auxilia a todos sem queixas.

"Amar" e "servir" são dois verbos que, quanto antes soubermos conjugar, mais felicidade e saúde alcançaremos. 

3- Também naquela última ceia, Jesus revelou a traição de Judas e a negação de Pedro. Estes episódios merecem profunda reflexão, pois representam dois arquétipos, dois padrões psíquicos universais intrínsecos à condição humana. Ao expor a negação e a traição diante daquela assembleia, Jesus empregava métodos terapêuticos buscando induzir Pedro e Judas à introspecção. Durante toda a ceia, através de suas palavras e ações, ambos projetavam sombras internas, aspectos ocultos do inconsciente que necessitavam ser trazidos à luz. 

Jesus os convoca a introspecção.

Tendo advertido Pedro, o diálogo com Judas adquiriu maior profundidade. Jesus captava as emanações perturbadoras da atmosfera psíquica de Judas e procurou socorrê-lo, agindo como um professor que facilita o processo de aprendizado do discípulo.

Jesus empenha-se em auxiliar Judas no processo de despertar, permitindo que o discípulo aproveite os últimos momentos ao seu lado e se liberte da letargia que o mantinha preso no mundo

Após anunciar que seria traído e que o traidor seria identificado ao qual desse um pedaço de pão, todos acompanharam o gesto de Jesus em direção a Judas (João 13,26). Todos escutaram quando o Mestre disse a Judas: "Faça logo o que você tem que fazer" (João 13,27). Judas levantou-se e foi negociar com os fariseus a entrega de Jesus. Seria esse o papel destinado a Judas? Era essa a intenção de Jesus em relação a Judas? Será que Judas veio ao mundo com esse propósito?

É óbvio que não. A frase dita por Jesus objetivou o despertar de Judas, com o fim de lembrá-lo de sua missão na Terra. Ninguém tem como missão cometer crimes, erros ou equívocos. Todos nós temos como missão vencer a nós mesmos, superando hábitos e costumes equivocados que adquirimos em encarnações passadas.

Judas estava completamente conectado com as ilusões do mundo material. Ele desejava que Jesus alcançasse o poder terreno. Ele acreditava firmemente que, ao entregar Jesus ao Sinédrio, isso resultaria em uma guerra civil e que sairiam vitoriosos. Isso se devia ao fato de que apenas algumas horas antes, a multidão em Jerusalém havia aclamado Jesus como o rei dos judeus (João 12,13).

Jesus decifra a intimidade de Judas e busca despertá-lo, pois Judas, assim como todos nós, tinha a missão de transformar sua perspectiva em relação ao mundo e a si mesmo.

Judas viveu ao lado de Jesus durante todo o seu ministério de amor. Recebeu o melhor alimento espiritual diretamente da fonte mais pura e, tendo nutrido o espírito, chegou o momento de realizar a tarefa que lhe foi designada.

Da mesma forma, somos como ele. Estamos recebendo alimento espiritual da fonte há quanto tempo? Há quanto tempo nos nutrimos do amor que extraímos das lições de Cristo? Para todos nós também chegou a hora de agir prontamente, realizando aquilo para o qual viemos ao mundo.

Há uma frase que diz que os dias mais importantes de toda nossa vida são dois; o dia em que nascemos e o dia em que descobrimos o porquê nascemos. 

Sabemos que estamos neste mundo com o propósito de evoluir, um objetivo que somente pode ser alcançado através do autoconhecimento. Devemos permitir que as transformações ocorram, sempre utilizando Jesus como nosso ponto de referência, modelo e guia. Ele nos serve como inspiração e direção na busca por nos tornarmos melhores versões de nós mesmos.

Chega o momento para todos nós de realizar esse trabalho de forma rápida, depressa, deixando para trás as ilusões do mundo e voltando-nos para o nosso interior. Já gastamos muito tempo e energia na busca por conquistas materiais que, eventualmente, serão consumidas pelo tempo. Isso é apenas uma questão de tempo!

Assim como Judas, se continuarmos presos a ilusões, também trairíamos Jesus através de nossa inércia. A inércia se configura como traição daqueles que não se movem em direção à transformação moral, sendo que viemos a este mundo justamente para cumprir essa tarefa. Se não agirmos rapidamente para realizar aquilo para o qual viemos, a oportunidade passará, a encarnação passará, e encerraremos nossa jornada com a sensação de falha, acreditando que traímos nosso projeto encarnatório e, ainda mais dolorosamente, que traímos Jesus.

Quando perguntaram a Chico Xavier qual era a maior a dificuldade que os espíritos enfrentam após a morte, respondeu a maior antena psíquica que o mundo já conheceu: A questão mais aflitiva para o espírito no Além é a consciência do tempo perdido.

terça-feira, 6 de junho de 2017

JESUS E A MULHER SIRO-FENÍCIA



Conta-se no Evangelho segundo Mateus (Mt 15,21-28) que, em certo momento de sua jornada, Jesus decide adentrar terras estrangeiras, especificamente na região da Fenícia, em direção a Sidon e Tiro. Lá, ele encontra uma mulher cujo nome e características físicas não são detalhados. O texto informa apenas que ela era grega, de origem siro-fenícia, e, portanto, não pertencia a nenhuma das 12 tribos de Israel; era, assim, uma mulher estrangeira.

Os judeus do mundo antigo costumavam desprezar os estrangeiros, reservando para eles termos ofensivos como "gentios", "imundos" e "cães desprezíveis". Evitavam misturar-se com os gentios, embora em alguns momentos de sua história tenham se relacionado com estrangeiros. Esse desprezo era justificado pelo fato de serem o único povo monoteísta do mundo antigo, reconhecendo a existência de um único Deus, criador de todas as coisas, enquanto os demais povos adoravam múltiplos deuses representados por animais, estátuas e fenômenos da natureza.

Assim, o orgulho dos judeus não lhes permitia manter qualquer tipo de relacionamento com estrangeiros. Evitavam falar com eles e entrar em suas casas para não se contaminarem. Para os judeus daquela época, o mundo era dividido em dois tipos de povos: os judeus, eleitos do Senhor, e os gentios, considerados imundos e desprezíveis. Assim, qualquer pessoa que não fosse de origem judaica era automaticamente classificada na categoria de 'gentios', considerados imundos e desprezíveis.

O encontro de Jesus com a mulher anônima é contextualizado pelo profundo desprezo que os judeus sentiam pelos estrangeiros. Neste caso específico, o desprezo era ainda mais acentuado devido à origem siro-fenícia da mulher. Os judeus mantinham ressalvas particulares em relação ao povo fenício, resquícios de um episódio doloroso e significativo ocorrido em seu passado distante.

Esse episódio está documentado no Antigo Testamento, especificamente no primeiro livro de Reis. Trata-se do casamento entre o rei Acabe de Israel e a princesa fenícia Jesabel. Este casamento não foi apenas uma união pessoal, mas também uma aliança política e econômica entre Israel e a Fenícia. A relação entre Acabe e Jesabel acabou por trazer consequências negativas para o povo de Israel, marcando profundamente a percepção que os judeus tinham dos fenícios.

A introdução do culto pagão ao deus Baal em Israel, um país monoteísta, foi uma das consequências mais controversas do casamento entre o rei Acabe e a princesa fenícia Jesabel. Na cultura fenícia, Baal era considerado a divindade da fertilidade do solo, e seu culto era marcado por práticas licenciosas e devassas, incluindo a chamada "prostituição divina", onde a promiscuidade sexual era a norma.

Este desvio religioso teve repercussões devastadoras para o povo de Israel. Algum tempo depois, Nabucodonosor, rei da Babilônia, invadiu Israel e subjugou os judeus à escravidão por um período de 70 anos. Este foi um dos momentos mais sombrios e difíceis da história judaica, e muitos acreditavam que essa escravidão foi uma punição divina por terem se desviado para a idolatria.

Embora esses eventos tenham ocorrido em um passado distante, o impacto emocional e cultural ainda era palpável. A memória desses acontecimentos afetava profundamente a percepção que os judeus tinham dos fenícios, mantendo uma barreira de desconfiança e ressentimento entre os dois povos.

No entanto, Jesus, o mestre dos mestres e terapeuta por excelência, desafia as convenções e preconceitos de sua época ao conduzir seus discípulos para um território que, para eles, era hostil. Ele utiliza a figura de uma mulher fenícia, tradicionalmente odiada e desprezada pelos judeus, como um veículo para transmitir lições inestimáveis de amor e fé.

O Evangelho relata que aqueles eram tempos difíceis para Jesus, pois os fariseus o perseguiam incansavelmente, buscando criar situações que justificassem sua prisão. Após ensinar sobre o Reino de Deus por meio de parábolas, Jesus decide se retirar da região da Galileia. Acompanhado de seus apóstolos, ele se dirige às cidades de Tiro e Sidon, na Fenícia (hoje parte do Líbano).

Ao se aproximarem da fronteira fenícia, perto de Sidon, uma mulher avista Jesus de longe. Ignorando as barreiras sociais e culturais que a separavam dele, ela sai de suas cercanias e corre em direção a Jesus. Quando finalmente o alcança, ela clama: "Senhor, filho de Davi, tem piedade de mim!”

A mulher estrangeira, embora imersa em uma cultura pagã, demonstra um entendimento notável das tradições judaicas ao reconhecer Jesus como o "Filho de Davi". Essa expressão, profundamente enraizada na tradição judaica, é usada para se referir ao Messias esperado, que deveria ser um descendente da casa de Davi. É notável que ela, familiarizada com as tradições judaicas, reconheça em Jesus o Messias enviado.

Esse fato é particularmente intrigante quando consideramos que muitos judeus, especialmente os fariseus, não reconheciam nem aceitavam a missão messiânica de Jesus. No entanto, essa mulher, tão desprezada pelos judeus, não hesita em romper com as barreiras culturais e psicológicas que a cercam. Ela sai de seu território, enfrenta o preconceito e vai ao encontro de Jesus, buscando estabelecer uma conexão com Ele.

Romper barreiras e limitações impostas pelas imperfeições morais para priorizar o espírito em detrimento da matéria é, de fato, um movimento da alma que cultiva a fé. A fé é como um grão de mostarda: pequena em seu início, mas com o potencial de crescer robusta e forte se devidamente cultivada. Jesus afirmou que, se tivermos fé mesmo do tamanho de um grão de mostarda, nada nos será impossível. Assim, a fé se torna o primeiro degrau na jornada que nos conduz ao Reino de Deus.

A mulher siro-fenícia, em sua busca por Jesus, exemplifica essa jornada de fé. Ela não apenas reconhece a divindade de Jesus, mas também se aproxima dele com um pedido específico e urgente: "Minha filha está sendo cruelmente atormentada por um demônio.”

É interessante notar que ela não diz "tem piedade de minha filha", mesmo sendo a filha que estava doente. Em vez disso, ela afirma: "tem piedade de mim, porque minha filha está atormentada por um demônio". O texto nos revela um coração maternal, que sofre com a dor da filha. Afinal, que mãe consegue ser feliz quando tem um filho infeliz? Impossível! O amor maternal é especial: ele tudo suporta, tudo tolera e tudo sofre. É um amor que se doa, é paciente, nunca reclama e sempre perdoa.

Este é o modelo do amor que Jesus espera de todos nós, quando nos recomendou amarmos uns aos outros como Ele nos amou. O amor maternal é o modelo do amor universal. Jesus espera que amemos os demais filhos de Deus da mesma forma que uma mãe ama seu filho. O Mestre espera que possamos perdoar os outros como perdoamos os nossos filhos, e que sirvamos aos outros sem reclamar, assim como fazemos com nossos filhos. Isso porque a nossa capacidade de amar é um reflexo direto da nossa estatura moral e espiritual. A cor, o brilho e a frequência vibratória do nosso corpo espiritual estão intrinsecamente relacionados com o amor que irradiamos a nossa volta.

No livro "Voltei", de Francisco Cândido Xavier, ditado pelo espírito que usou o pseudônimo de Irmão Jacob, há um relato que ilustra essa ideia. O espírito conta que se sentiu envergonhado ao perceber, no mundo espiritual, que a luminosidade de seu perispírito era visivelmente inferior à dos outros espíritos, que exibiam uma luminosidade muito maior. O que eleva um espírito acima do outro não são seus conhecimentos acadêmicos ou suas conquistas materiais no mundo terreno, mas sim sua capacidade de amar os demais filhos de Deus da mesma forma que uma mãe ama seus filhos. O amor, juntamente com a fé, constitui o segundo degrau na jornada para alcançar o reino de Deus.

Prosseguindo no texto, diante do apelo da mulher, Jesus opta pelo silêncio. Em resposta, os discípulos se aproximam dele e dizem: "Senhor, manda embora essa mulher, pois ela vem gritando atrás de nós."

Os discípulos de Jesus não se mostraram sensíveis à súplica da mulher. Em vez de se compadecerem com seu sofrimento, eles apenas intercedem para que Jesus a afaste, já que a angústia dela os incomodava. Para eles, a mulher representava um problema, e a solução proposta era simplesmente afastar esse problema.

No entanto, todos os problemas que surgem em nossas vidas devem ser vistos como verdadeiras oportunidades de crescimento. Um desafio superado é sinônimo de evolução espiritual. Aqueles que já despertaram para sua realidade cósmica buscam aprender com as adversidades.

Por outro lado, muitas pessoas ainda se movimentam pelo mundo em um estado de "consciência adormecida", sem reconhecer o poder terapêutico e pedagógico das dificuldades que a vida lhes apresenta.

Todo sofrimento humano decorre da falta de compreensão de que estamos no mundo para evoluir por meio das mais diversas circunstâncias e desafios. Por isso, a habilidade de enfrentar os obstáculos da vida, sem recorrer a mecanismos de fuga, representa o terceiro degrau para se alcançar o reino de Deus.

O diálogo entre Jesus e seus discípulos continua. Diante da sugestão deles, Jesus se dirige à mulher e responde: "Eu fui mandado apenas para as ovelhas perdidas do povo de Israel.

À primeira vista, parece que Jesus está dizendo que não pode ajudá-la. No entanto, a mensagem que o Mestre deseja transmitir é muito mais profunda do que aquela que se depreende de uma leitura superficial do texto.

É admirável que o Mestre use a expressão "fui mandado", com o objetivo de demonstrar sua total obediência à vontade do Pai. Embora Cristo seja o Governador do Planeta e, nessa condição, pudesse se dirigir a todos os corações ao redor do mundo, o Pai o enviou especificamente para aquele pequeno território. Jesus, por sua vez, respeitava e obedecia plenamente à vontade de Deus.

Respeitar a vontade do Pai e aceitar o próprio projeto encarnatório são formas de expressar amor a Deus. Jesus afirmou que este é o primeiro e maior mandamento: amar a Deus acima de todas as coisas.

Aceitar o projeto encarnatório é depositar confiança em Deus, independentemente dos problemas que possam surgir na vida. Este é o quarto degrau que conduz ao reino de Deus.

A mulher, por sua vez, não desiste. Cheia de fé e amor, ela se prostra aos pés de Cristo e implora: "Senhor, ajuda-me."

Ao final do diálogo, Jesus dirige à mulher sua última frase antes de abençoá-la e partir. E como é no final que sempre estão reservadas as maiores surpresas e as lições mais profundas, Jesus olha-a nos olhos e diz: "Não está certo tirar o pão dos filhos e jogá-lo aos cachorrinhos.”

Numa primeira leitura, e de acordo com as tradições judaicas da época, é correto concluir que os "filhos" se referem aos judeus, enquanto os "cães" representam os estrangeiros. No entanto, ciente da dureza da expressão "cães", Jesus opta por usar o termo no diminutivo, suavizando assim o impacto.

Refletindo sobre esse trecho, podemos nos perguntar: quantas vezes oramos a Deus, suplicando socorro para nossas necessidades, e a vida nos responde de forma ainda mais dura? Como reagimos diante das severas provações da vida, especialmente quando tudo parece indicar que Deus nos abandonou?

Imagine a situação daquela mulher: ela estava diante de Cristo, face a face, implorando por socorro, e Ele lhe diz que não pode tirar o pão dos filhos para dar aos "cachorrinhos". E se fossemos nós nessa situação, implorando por ajuda e recebendo o que poderia ser interpretado como um desprezo em resposta? Como reagiríamos? Quais sentimentos guardaríamos em nosso coração?

A resposta a essas indagações servirá como um espelho para a graduação de nossa humildade, caso a possuamos. A humildade é, após o amor, a força mais poderosa da alma. Não é à toa que ela faz parte das bem-aventuranças: "Bem-aventurados os humildes, porque deles é o reino dos céus." A humildade representa o quinto degrau que nos conduz ao reino de Deus.

Humildade é a aceitação do outro e da vida como ela é, sem reações impulsivas, mas com uma compreensão profunda de todas as circunstâncias. Emmanuel nos ensina que ser humilde é abençoar sempre; mesmo quando temos o direito de reclamar e protestar, o coração humilde apenas abençoa.

A humildade se manifesta claramente na reação da mulher estrangeira que, mesmo comparada a um cachorro, ofereceu a Jesus uma das respostas mais belas de todo o Evangelho: "Sim, Senhor, é verdade; mas até os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos."

O amor verdadeiro é um sentimento puro, desprovido das manchas das deformidades morais, como ciúme, melindre, recalque, vaidade, orgulho e egoísmo. Um coração que ama verdadeiramente emite tanta luminosidade que não se ofende diante de qualquer provocação. Ele jamais se sente diminuído; conhece e aceita o seu lugar no mundo. Acima de todas as circunstâncias da vida, o coração que ama permanece fiel a Deus e sempre respeita a Sua soberana vontade.

A mulher do evangelho, impulsionada pelo amor que carregava em sua alma, não se sente humilhada ou desprezada, mesmo sendo comparada a um cachorro. Ela não questiona sua situação; ao contrário, aceita seu lugar no mundo sem desejar ocupar o espaço reservado por Deus para outros. Demonstrando uma humildade e fé incomparáveis, ela se contenta com as migalhas.

Diante dessa mulher virtuosa, Jesus não intervém, pois não há necessidade. Ela já havia construído em seu coração o Reino de Deus, utilizando os ingredientes do amor, da fé, da resiliência e da humildade.

Por isso, o Mestre lhe diz: "Mulher, é grande a sua fé! Seja feito como você quer." E, a partir desse momento, sua filha fica curada.